Sou eu (2)

25 de abril de 2025 Off Por Funes Patos

Sou eu (2) por Perônico L.

Texto extraído da coluna FUNES do Jornal A União publicado na data de 25/04/2025.

 

Voltando para casa, eu passei naquele viaduto. A queda foi um pouco seduzente, mas me mantive no chão, passei no mercado e comprei uma barra de chocolate para jantar antes de dormir. Cheguei em casa, tomei um banho e fui me deitar. Abri a janela, coloquei uma música e acendi um, fumei, vi o movimento dos carros, das motos e dos ônibus. Vi também o céu, com alguns prédios tampando a visão completa dele. Estava azul, mas com algumas partes rosas.

Olhei de volta para o asfalto e vi uma mulher no ponto de ônibus: estava só, até que apareceu um homem, que sentou próximo o suficiente para lhe causar desconforto; sem nem um receio, ele acariciou a coxa dela, que tentou se afastar. Porém, ele foi resistente e agressivo, e, lá de baixo, ela conseguiu me ver naquela janela. Ela olhou fixamente na minha pupila esquerda, o homem já estava beijando o pescoço dela, e eu vi algumas lágrimas caírem. Eu fechei a janela, cobri com a cortina e liguei o ventilador… Eu… eu sinto muito.

Fiquei olhando para o teto. Passaram-se cinco, 10, 20 e 30 minutos. Abri um pouco a cortina, não tinha nada nem ninguém. Queria nunca ter visto aquele ponto de ônibus. Eu sei, sou também vítima disso tudo, mas também sou culpado, nunca faço nada, permaneço neutro. Eu diria que sou um morto, eu sei, não queria estar na pele daquele garoto que matou o pombo, nem no outro garçom, muito menos nessa mulher, cujo paradeiro nunca saberei!

Nesta vida, eu tenho noção que ela divide quem vive de quem sobrevive. Ela divide os meus dos teus e os teus
dos deles; os deles escolheriam nascer milhares de vezes, os nossos já nascem mortos e, se nascem, já querem morrer. Aqui, na cidade, ninguém se importa com ninguém. Ontem mesmo o casal aqui do lado da minha casa brigou feio. A esposa tinha feito um bolo de chocolate para o marido, ela tirou um pedaço do bolo para saber se tinha ficado gostoso, porém o marido chegou bêbado em casa, viu que ela tinha provado.

Marido: “Você agora vai aprender a comer só com minha permissão!”.
Esposa: …
Marido: “Sente no sofá, agora”.
Esposa: …
Marido: “Coma todo o bolo. Só vai se levantar quando comer toda essa merda de bolo. Sabe o que você é? Um lixo, isso que você é!”.

Eu consegui ver tudo isso da janela na sala, terminou num silêncio… Assim que perceberam que eu olhei, saíram do cômodo. Prometi a mim mesmo que não seria neutro nessa situação: liguei para a polícia. Não tem como se manter neutro depois de tanta coisa assim. E é por isso que me encontro aqui, no viaduto, de novo. Busco em qual canto me encontrei para assim me perder. Não sei se isso começou desde a pancada na rasga-mortalha ou se em algum outro ponto. Sou desesperança, perdi qualquer sensibilidade em tentar sobreviver, estou prestes a ser seduzido pela queda, levo apenas meus cigarros tragados e algumas bebidas. Talvez, assim, eu me sinta com menos medo da queda.

Queria que o mundo fosse menos difícil; queria que, em vez de frases de despedidas, pudéssemos ser mais fortes e unidos; queria poder me encontrar sem precisar ser ferido ou ferir alguém; queria ser eu sem precisar ter justificativa desse ato. Tomara que eu não pule do viaduto. Sou louco, doido, transtornado, mas morrerei sabendo que não faço parte das maldades deste mundo; apesar de ter culpa e sangue nas mãos, nunca serei como eles!

Sempre serei como nós. Há uma grande diferença entre os meus, os seus e os deles. Os meus e os seus são nossos e podemos confiar; os deles são latifundiários e comedores de terras, pragas disfarçadas, egoístas, sujos porcos capazes de fazer tudo por dinheiro e fama! Lembre-se: os nossos estão nos acidentes de carros, nos suicídios, nas balas perdidas, nos muros pedindo justiça, no silêncio das falas, estamos por todo canto; quando olhar para algum muro pichado, lembre-se que eu também estarei lá.