Vozes que não se calam

Vozes que não se calam

15 de maio de 2022 Off Por funes

Vozes que não se calam por  Delzymar Dias.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 13/05/2022.

 

Em recente pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, 75% dos entrevistados declararam apoiar a democracia e 78% confirmam o óbvio, a ditadura brasileira foi uma ditadura. Houve um golpe de estado, o cargo de presidente foi declarado vago com o presidente João Goulart em solo brasileiro, houve perseguição e cassação de mandatos de parlamentares da oposição, suspensão de eleições diretas, atos institucionais totalmente contrários a constituição vigente, torturas, prisões, mortes e desaparecimentos forçados de centenas de pessoas.

Dois fatos chamaram atenção nas últimas semanas e trouxeram o tema de volta ao cenário. O primeiro foram os ataques recebidos pela jornalista Miriam Leitão, que foi brutalmente torturada durante o período. Mesmo estando grávida, foi colocada nua em uma sala e para ampliar o desespero, os militares colocaram uma cobra no recinto para deixar a situação ainda mais apavorante. O segundo episódio fez referência a divulgação de áudios oriundos de julgamentos do Superior Tribunal Militar no qual os ministros debatem abertamente os casos de tortura e perseguição a opositores políticos durante o período.

Escutamos a confirmação de algo que já sabíamos e uma das primeiras publicações que tratavam sobre o tema foi do projeto ‘Brasil: Nunca Mais’, liderado pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo através de Dom Paulo Evaristo Arns. O livro Brasil: Nunca Mais traz uma série de relatos sobre as torturas sofridas pelos opositores durante a ditadura, baseado em processos e inquéritos abertos pelo regime. Um dos principais objetivos da obra era evitar que esses processos fossem destruídos, fazendo com que a população tomasse ciência dos fatos ocorridos

Infelizmente, não conseguimos virar essa página infeliz da nossa história e o motivo é bem simples. Fazemos parte de um pequeno grupo de países que não puniram de maneira exemplar os agentes que torturaram e mataram centenas de pessoas no período. Essa ausência de punição acabou por estimular novos grupos radicais, capitaneados por políticos em busca de votos e saudosistas embriagados por uma falsa ideia de que naquela época o Brasil vivia em paz, sem violência e sem corrupção.

Essa tentativa de manipular a história e tentar justificar as barbaridades cometidas pelos agentes do estado é parte de um projeto maior que tem como referência o desprezo pela democracia e pelas instituições. Em nosso estado, o relatório final da Comissão Estadual da Verdade cita que 125 paraibanos foram torturados durante os 21 anos de ditadura militar.

Em Patos, um dos episódios de perseguição ocorreu após a pichação do atual Colégio Monsenhor Manoel Vieira e do cemitério São Miguel no início dos anos 1970, bem no contexto das comemorações do 7 de setembro. A frase “abaixo a ditadura e seus generais nazistas” desencadeou uma série de perseguições contra cidadãos que passaram a ser acusados de subversão. Mesmo sem ter envolvimento direto no ato de pichação, o advogado Marcone Sobral foi protagonista de uma situação inusitada que evidencia o desprezo da ditadura pela cultura e pelo conhecimento. A casa de Luzia, sua tia, foi invadida e no quarto de Marcone foram encontrados diversos livros com capa vermelha em uma língua desconhecida pelos agentes. Esses livros “subversivos” ou “comunistas” eram apenas enciclopédias, livros que reuniam conhecimentos de várias áreas diferentes e eram comuns no período que antecedeu a internet.

A cultura foi uma das áreas mais atingidas e convive até hoje com os resquícios autoritários daquele período. A censura era implacável com livros, novelas, músicas, filmes, espetáculos teatrais, enfim, jornais circulavam apenas com aquilo que era autorizado pelo governo e a liberdade de imprensa não existia. É preciso voltar a esse tema sempre, infelizmente. Os ataques recebidos pela jornalista Miriam Leitão representam a continuação daquela tortura pelos defensores atuais do regime que, caso estivessem em posição de poder na época, fariam exatamente o que foi feito (ou até mais). Isso mostra a contradição de um discurso em defesa da família por parte de um grupo que se diz cristão e ao mesmo tempo despreza a vida de uma jovem grávida, presa e torturada.

O que estamos vendo hoje é a saída não constrangida de pessoas que viviam em um submundo particular de posições vergonhosas, provenientes ainda dos entulhos autoritários presentes em nossa sociedade. Foi ditadura, houve tortura e os agentes do golpe de 1964 entregaram um Brasil bem pior do que receberam.