Um Enem sem história?
2 de dezembro de 2022Um Enem sem história? por Delzymar Dias.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 02/12/2022.
O título deste texto é uma provocação proposital sobre as abordagens referentes ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Vamos falar sobre história, regionalismo e cultura no contexto da prova que é a segunda maior seleção de estudantes do mundo, perdendo apenas para o Gaokao Chinês.
A prova de Ciências Humanas do Enem deste ano nos trouxe uma série de questões totalmente conectadas com esse modelo de avaliação mais aberta. Uma das questões mostrouum espiral onde o aluno deveria relacionar a violência contra a mulher, levando em consideração os afetos e o ápice da violência de gênero que é o feminicídio. Ainda nessa linha sobre a condição feminina, uma das questões apresentou dois textos sobre a educação no Brasil do século 19. No primeiro, o Visconde de Cayru defendia que o currículo de matemática das meninas fosse formado por uma quantidade menor de conteúdos, chegando a relacionar uma espécie de limitação cognitiva daquele grupo que ele chamava de “belo sexo”. Já o segundo texto marca a posição do Marquês de Santo Amaro, que defendia a igualdade de condições para a aprendizagem, reforçando que a posição anterior não fazia mais sentido naqueles tempos.
Alguém perguntou nas redes sociais como o aluno da Educação Básica vai saber sobre os processos pedagógicos e currículo em matemática durante o segundo reinado? Esse é o ponto. A questão do Enem sobre ensino de matemática não é uma questão sobre ensino de matemática, é sobre a necessidade de reflexão sobre as desigualdades históricas entre homens e mulheres que, a partir de teses sem nenhum fundamento, repercute nos discursos de parlamentares que defendiam a restrição do acesso ao saber. Essa tentativa histórica de silenciar as mulheres poderia também ser ilustrada na questão através de outrosexemplos, como na obra clássica da literatura ocidental chamada A Odisseia. Escrita há quase três mil anos, aborda,além do retorno de Ulisses para casa após a Guerra de Tróia, um pouco do crescimento de Telêmaco, filho de Ulisses e Penélope. Em um certo momento, a mãe dirige-se ao palácio onde umpoeta se apresenta e pede que ele mude a toada, já que não estava agradando -a. Telêmaco, ao escutar a mãe falar em público diz: “Mãe, volte para seus aposentos e retome seu próprio trabalho, o tear e a roca. Discursos são coisas de homens, de todos os homens, e minhas, mais que de qualquer outro, pois meu é o poder nesta casa”. Nesse caso, o aluno não precisaria ter lido A Odisseia para entender a questão, já que ela faria, através de seu comando, uma referência direta ao texto.
É preocupante quando diversos estudantes postam em suas redes sociais que não conseguiram identificar a presença dos conteúdos históricos na prova de Ciências Humanas. Isso mostra que a estrutura educacional brasileira ainda não conseguiu entender a proposta do exame que tende a fugir das abordagens tradicionais que tinham por objetivo apontar a conceituação a partir das datas, fatos e vultos considerados importantes. Isso não existe mais. A historiografia já fez esse trabalho, a hora agora é de revirar e trazer à tona outros personagens que sempre foram excluídos das narrativas oficiais.
O Enem de hoje depende de um professor sem medo e com liberdade para exercer sua criatividade no sentido de fazer conexões entre o conteúdo formal e o currículo oculto. Precisamos estabelecer pontes! Quanto tempo foi necessário para conhecermos Carolina Maria de Jesus? Uma história fantástica de uma das grandes escritoras brasileiras. Carolina deve aparecer em literatura, mas também pode ser protagonista em outras árease objetos do conhecimento. Em Quarto de Despejo, uma das obras citadas no Enem, ela escreve em seu diário que, ao final daquele dia, só conseguiu meios para alimentar as filhas no final da noite. Disse que: “E assim, no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra aescravatura atual – a fome!”. Mais importante que a abordagem meramente factual é a abordagem contextualizada das relações humanas.
Um dos pontos mais marcantes da prova foi o tema da redação sobre comunidades tradicionais. A FundaçãoErnani Satyro e o caderno de Cultura do Jornal A União, publicaram, através deste espaço semanal, diversos textos que envolvem o tema. No dia 30 de julho de 2021, o escritor Ronaldo Magella publicou texto sobre a Cultura Negra de Santa Luzia (PB), onde abordou a necessidade de políticas públicas voltadas a preservação da memória e da cultura do povo negro daquela cidade. No dia 27 de maio de 2022, a pesquisadora Caroline Leal Dantas escreveu sobre a identidade cultural cigana no município de Patos (PB) e suas principais referências. No dia 25 de março de 2022, o historiador Thiago Batista Rufino escreveu sobre a identidadequilombola em Pombal (PB). Eu escrevi sobre cultura, memória e tradições locais em 16 de julho de 2021 e sobre o Enem e as abordagens sobre culturalocal em 24 de dezembro de 2021. Todos esses textos estão disponíveis no site do Jornal A União.
Em que pese os problemas estruturais da educação brasileira, o Enem vem conseguindo ser bastante plural em suas abordagens. Em uma sociedade ideal, nenhum meio que limitasse o acesso dos estudantes a universidade seria aceito como razoável. Infelizmente, não temos vagas suficientes nas universidades e muitos alunos não conseguem ultrapassar essa barreira. Em 2022, o Enem teve o menor número de participantes dos últimos anos, o que evidencia ainda mais essa problemática.