Um conto sobre a janela
10 de julho de 2023Um conto sobre a janela por Delzymar Dias.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 07/07/2023.
Dona Raimunda enxerga o mundo através da sua janela. Chegando a um abrigo de idosos, sabia que sua jornada naquele local deveria ser breve, um mês, dois, no máximo. Era só o tempo dos parentes próximos concluírem uma reforma na nova casa onde iria residir. A casa ia ficar linda, do jeito que ela sempre sonhou, com janelas largas, portas de madeira e um piso qualquer para além do cimento.
Chegou encabulada a sua morada provisória, sempre enxergou aqueles espaços como sendo para outras gentes, aquelas que não tinham parentes, desgarradas da vida e dos seus. Gente que em algum momento perdeu a consciência de si para com os outros. Não era dela e nem era para ela aquele lugar.
Seu quarto era o primeiro da esquina, tinha uma janela curta e gradeada, mais ou menos na altura da sua cabeça que, um pouco inclinada, possibilitava que ela enxergasse o movimento das ruas que se cruzavam em frente a sua morada provisória.
A rua era movimentada. Ela gostava e se alegrava com isso. Possibilitava conexões com as suas vivências que brevemente retornaria. Os encontros com os vizinhos na calçada, os meninos jogando bola, as reclamações em torno do barulho. Todo o movimento era novo e admirável, Dona Raimunda enxergava aquilo com atenção, já que em pouco tempo não teria mais aquela esquina a sua disposição.
Com o passar do tempo, as visitas que recebia dos parentes foram se tornando cada vez mais raras. A cada encontro, novas justificativas eram colocadas para que o serviço de reforma da casa não estivesse pronto. O pedreiro não terminou, o teto precisa ser trocado, as telhas não encaixavam nos caibros e ripas, o pintor não apareceu. As desculpas foram sumindo no mesmo ritmo das pessoas que a visitavam.
Começou a ser tratada como pessoa do lugar, como gente dali. Os outros que também estavam lá entenderam bem antes de Dona Raimunda a situação. Sabiam desde o primeiro momento que ela era parte permanente daquele todo que ela achava ser provisório. Passaram a apresentar coisas que poderiam ser feitas no lugar. Falavam sobre tudo e apresentavam a ela modos de passar o tempo e tentativas de substituir o afeto familiar por outros afetos e afazeres. Nenhuma rotina é capaz de suprir ausências.
A esperança de retomar sua vida e voltar para casa foi dando espaço a ressignificação brutal daquele lugar. A ausência de visitas, a janela, o lugar como moradia permanente, o esquecimento, a esquina, os meninos brincando, os carros que passavam, as pessoas caminhando, tudo agora tinha um sentido diferente, mórbido, triste, negativo. Não esperava mais ninguém e sabia que ninguém esperava mais por ela. Aquela altura, não havia mais casa, reforma, pedreiro, pintor, parentes, portas de madeira ou piso para além do cimento.
Tudo fez um sentido negativo quando a grade, quase imperceptível nos primeiros dias, passou a acompanhar tudo o que acontecia para além da janela. Entendeu que, a partir de agora, com um mundo em movimento em sua volta, sua vida seria uma não vida.