Relíquias*
8 de janeiro de 2024Relíquias*por Virgílio Trindade**.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 05/01/2024.
A velha escola de Bananeiras era um paraíso. Pomares, cinema, esporte, roupa lavada e engomada, missa aos domingos. amigos e bons professores. Só os malandros – como eu – não aproveitaram. E, infelizmente, quase todos eram malandros.
Lá cheguei em princípios de 52, com menos de 12 anos – a idade mínima permitida – e só fui aceito porque sobrou vaga e fiz um ótimo exame de admissão. Logo me encantei com as brincadeiras e esqueci o estudo. Resultado: duas reprovações e o desligamento.
O regime era duro: banho às seis, café às seis e meia, chamada às sete, trabalho de sete às dez, almoço às onze, aulas de uma às cinco, jantar às seis e dormida às oito. Tudo com fila e muita disciplina. Perder horário era fim de semana sem cinema e sem passeio (em Bananeiras, Moreno – hoje Solânea – ou nos outros sítios vizinhos). Todos eram identificados pelo número. O nome nada valia. Eu era o 51, herdeiro de um tal Deda, classificado como o pior elemento de todos os tempos. Dizem que fiz jus ao número.
Andar à noite era uma façanha, pois a escola era toda mal-assombrada. Diziam: no horto aparecia um padre sem cabeça; na quadra de esporte, um caixão de defunto que flutuava; no açudinho da enfermaria, uma mula com olhos de fogo; no campo de futebol o finado Lauro chutando bolas na trave. Para cada caso uma testemunha de vista, jurando por Deus e todos os santos. Quem podia duvidar? Melhor era não tirar a prova e andar em grupo, falando alto e, se possível, tangendo algumas rês (alma não aparece onde tem gado).
Além das do além, havia também estórias deste mundo: “Carnaúba”, às vezes chamado Dorgival, era o mais valente da escola; comandava a “turma do vale” e era respeitado por todos. Um dia, numa briga, meteu uma jaca mole na cabeça de outro valentão, espalhando caroço para todo lado. O cara além de apanhar, pagou a jaca e levou uma vaia. De outra feita, “Benedito Cabeção” e “Caboré”, ambos de Catolé do Rocha, cada qual com um pau na mão, brigavam feio, e eu fui apartar; os dois se uniram e me deram umas pancadas no espinhaço.
De tanto ouvirem, meus filhos, Roberta e Ely e minha esposa Maria José quiseram conhecer a velha escola, e eu prometi que qualquer dia iríamos lá. Tivemos a chance no primeiro dia do ano: na volta de João Pessoa, entraremos pelo anel do Brejo. Mas, quando iniciamos a viagem, comecei a recordar: o campo de futebol, o aviário, o apiário, as hortas, o pavilhão de recreio, os sítios onde a gente roubava manga, o professor Edgar, Zé Willer, Paulo Jobim, Jaime, Geudo, Paizinho, a feira de Moreno, o lanche que papai mandava, o “misto” que nos transportava e tantos outros lugares, pessoas e coisas que marcaram minha vida ali. Tive medo de voltar, ver tudo diferente e contrariar minhas lembranças e minha saudade. Passei direto na entrada de Sapé e, ante o olhar surpreso dos meus filhos, expliquei: “tá ameaçando chuva, e a gasolina pode faltar. Melhor ir direto para casa. Qualquer domingo desses a gente vem a Bananeiras”. Só minha mulher entendeu.
(*) Texto produzido originalmente em 24 de julho de 1986;
(**) Neste mês, a Funes faz uma homenagem ao escritor, jornalista, professor e radialista paraibano Virgílio Trindade, que morreu em 2009. Por isso, todos os textos de janeiro serão crônicas assinadas por ele.