Os ‘Sonetos do Exílio’ III
23 de março de 2022Os ‘Sonetos do Exílio’ III por José Mota Victor.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 08/10/2021 .
Todo livro tem uma história, não é por acaso que ele entra na sua biblioteca. Depois da leitura o proprietário deve decidir se a obra vai ser descartada ou não, tem que existir um motivo para ocupar o espaço precioso da estante.
Depois de alguns anos é necessário um balanço para decidir quais os exemplares que devem permanecer ou não nas prateleiras. Minha bisavó foi radical, logo após o encantamento do monarquista Miguel Fernandes Mota, a matriarca decidiu defenestrar todos os livros que lembravam o triste episódio que enlutou a pacata cidade do Agreste pernambucano.
Passo agora, depois de longo e tenebroso inverno, a contar detalhes da trágica história do livro que foi o estopim do assassinato do inolvidável poeta caruaruense. No romance Ducks City – uma cidade encantada não muito longe daqui, en passant, fiz um breve comentário sobre a longevidade da família Mota que sabiamente retirava das estatísticas os membros assassinados por querelas políticas e crimes passionais.
Bento da Mota era um ponto fora da curva, morreu cedo, vejamos uma passagem do romance: “Um célebre caso da nobre casa Atom foi o assassinato na Capital do Forró do insigne Bento Atom, cunhado de Tobias, que andava de caso com uma linda mulher casada com um famoso encadernador de livros raros”.
O caso teve início meses atrás quando o monarquista Miguel Fernandes Mota discutiu calorosamente com o famoso encadernador de livros sobre a autenticidade dos Sonetos do Exílio. O jovem argumentava que durante o período em que morou na cidade do Rio de Janeiro existia um consenso entre os intelectuais de que os poemas não tinham sido escritos pelo Imperador Pedro II. No calor da discussão, inexperiente, teve a petulância de levantar a voz para o severo e intransigente monarquista:
– São poemas apócrifos!
Miguel Mota não se conteve com a ousadia e colocou a ponteira da bengala no peito do jovem artífice, a bengala era uma arma de fogo dissimulada, puxou o cão e colocou o dedo indicador no gatilho:
– Não se atreva de levantar a voz…
Um amigo interveio dizendo que o colaborador anônimo do opúsculo tinha sido o Conde Afonso Celso de Assis Figueiredo, filho do Visconde de Ouro Preto, o professor e poeta tinha dedicado a publicação dos Sonetos do Exílio a Sua Majestade a Senhora D. Isabel. Encerrou a discussão dizendo:
– Em nome da paz e da Imperatriz dos brasileiros vamos encerrar essa discussão inócua…
O monarquista não desperdiçou o tempo de puxar o cão da arma e atirou no vidro do estabelecimento comercial do encadernador. Ao se retirar, sem se despedir dos amigos, disse ao jovem assustado que fosse pegar o dinheiro do prejuízo na sua casa.
Depois de recuperado do susto, o jovem tossiu várias vezes e sussurrou para o cliente que restou na loja:
– O Imperador era um péssimo sonetista, os Sonetos do Exílio têm uma técnica bastante apurada, digna dos grandes mestres da literatura brasileira.
Meses depois o monarquista, que não queria se encontrar com o jovem artífice, pediu ao seu parente Bento da Mota a gentileza de levar o livro Prometheu Acorrentado para ser encadernado na loja do desafeto. O livro, um original de Eschylo, foi vertido literalmente do original grego para o português por Dom Pedro II, Imperador do Brasil.
A trasladação poética do texto foi realizada pelo Barão de Paranapiacaba e o livro impresso no ano de 1907 na Imprensa Nacional, na cidade do Rio de Janeiro. O livro foi dedicado a memória de D. Pedro II, do Brasil, com saudade e admiração e a sereníssima princesa a senhora Dona Izabel, a redentora, com veneração e lealdade.
Para resumir a história devo dizer que quando Bento da Mota foi levar o livro na loja para fazer uma capa dura e uma jaqueta de couro de carneiro, encontrou pela primeira vez a doce e provocante dama do encadernador.
Foi amor à primeira vista, todo dia ele passava para saber do andamento do trabalho e aproveitava para recitar longos poemas para a atraente senhora, ela ouvia deslumbrada os versos alexandrinos do poeta caruaruense.
Dos versos para cama foi um pulo e o romance atravessou o ano de 1912 sem sobressaltos até que no segundo dia do ano novo o encadernador recebeu uma carta anônima. O final da história se encontra no início do segundo livro da trilogia Ducks City – uma cidade encantada não muito longe daqui: “Quando Bento Atom recebeu o primeiro tiro naquele beco escuro e continuou de pé, o assassino, antes de descarregar o revólver, ainda teve que ouvir as últimas palavras do destemido Atom: – ‘Morro de emboscada, mas você nunca deixará de ser corno.’
O encadernador deu meia volta, recarregou a arma e quando chegou em casa deu apenas um tiro na testa da esposa que estava dormindo deitada na cama. No outro dia os caixões se encontraram na rua Vidal de Negreiros e seguiram juntos ao cemitério São Roque, na Capital do Forró.”
O raríssimo exemplar do Prometheu Acorrentado, que se encontra em perfeito estado de conservação, faz parte da “Estante do Império do Brasil”, da Biblioteca Armorial do Pinharas. Foi sutil a vingança do jovem artífice, na lombada da elegante e primorosa encadernação colocou apenas as inicias do sobrenome do meu bisavô: F.M.
Só depois de muito tempo o monarquista descobriu a falta da letra inicial do seu nome próprio, ficou intrigado e matutava para saber se o erro tinha sido intencional. A partir daí surgiram ilações sobre as inicias da lombada do livro.