O cheiro das ruas do meu tempo
14 de novembro de 2022O cheiro das ruas do meu tempo por Jerdivan Nóbrega de Araújo.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 11/11/2022.
Uma boa chuva no final da tarde e somos tomados pelo cheiro de terra molhada. Aquela olência que sentimos quando crianças e ainda trazemos hoje em nós, já adultos. De repente, nos vem aquela vontade incontrolável de sair correndo à procura das biqueiras, de um lugar para jogar bola de gude ou simplesmente de pisar na lama que escorre pelas ruas. Ah, a terra molhada… Traz-me boas lembranças do aroma inconfundível das ruas de Pombal da minha distante infância. Aquelas ruas tinham cheiros peculiares a cada artéria ou momento.
Nas ruas dos Roques, por exemplo, o olor era do café torrado que fugia pelas chaminés da torrefação de seu Antônio Rocha. Era o café Dácio sendo torrado e moído para ser distribuído por todo o comércio da região, mas não sem antes nos entorpecer com o seu aroma.
Subindo próximo à Rua João Pessoa, já sentíamos o cheiro da semente de algodão que era triturada para fabricação de óleo e de ração animal, que chamávamos de resíduos, pela usina de Paulo Pereira, competindo com cheiro das amêndoas de oiticica que, levado pelo vento, ia bem mais distante, inundando cada quadrante da cidade. O incômodo da influência da queima da casca da amêndoa de Oiticica era compensado pelos empregos proporcionados pela velha fábrica aos pais de família da terra de Maringá.
Nas madrugadas e nos finais de tarde, eram as padarias que incensavam as esquinas. As fornadas de pão quentinho traziam à porta dos estabelecimentos os fregueses, movidos pelo cheiro gostoso de pão que o vento tratava de espalhar pela cidade. Era assim nas panificadoras do centro e dos bairros, a exemplo dos estabelecimentos de Seu Napoleão, seu Adauto e seu Antônio Barbosa.
Chegava o sábado, e como era gostoso andar no meio da feira, sentindo o aroma do feijão cozido com muita carne de charque e jerimum, preparados e vendidos nas muitas barracas que se formavam ao longo das ruas laterais do Mercado Público, onde os matutos enchiam seus generosos pratos e os saboreavam lentamente.
Nas muitas bodegas em que os trabalhadores rurais faziam as suas feiras da semana, o cheiro que era liberado era o da cachaça e o do fumo de rolo, apreciados entre uma e outra cusparada, para preocupação de quem passava pela calçada daqueles estabelecimentos comerciais. Quem já sentiu cheiro de budega do interior?
Ao meio-dia do domingo, era gostoso atravessar as ruas e sentir o cheiro do almoço preparado pelas donas de casa, à espera dos seus filhos e esposos para sentar à mesa. E vêm às minhas recordações olfácticas até o sabor inconfundível do peixe frito, da carne de sol assada na brasa ou da galinha, cujo aroma descia pelas ruas, abrindo o apetite de quem transitava pelo lugar.
Mas também havia um odor que incomodava a cidade. Eu não me arriscava a passar em comércio de compra de couro nos arredores da usina de Paulo Pereira, onde os couros de animais esticados em varas traziam às nossas narinas a podridão da carne e da vida massacrada.
Vinha a noite e o perfume de flores, como os bulgaris de Dona Neves Tertuliano, dos Alecrins da residência de Dr. Atêncio e os jasmineiros do Jardim de Seu Saturnino se misturavam com a água de cheiro usada pelas moças e rapazes que passavam em direção ao Cine Lux ou praças centrais da cidade, onde iam namorar tomando sorvete de baunilha na sorveteria de seu Bernardo Bandeira.
O cheiro da pipoca vendida em frente ao cinema e até o inconfundível aroma que penetravam nas nossas narinas ao abrirmos os pacotes de figurinhas do álbum que acabaram de ser comprado na banca no Armarinho de seu Antônio de Cota, são algumas das lembranças dos cheiros das ruas da minha terra.
Quantas outras linhas eu poderia escrever sobre os perfumes da minha infância? Arrancar de mim, como um tesouro, cada lembrança, como se fora uma botija enterrada no passado para ser desfrutado no ocaso da minha existência.