Imagens refletidas

26 de fevereiro de 2024 Off Por funes

Imagens refletidas por Misael Nóbrega de Sousa.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 23/02/2024.

 

(…) O Brasil negou a si mesmo. Não houve luta armada; passeata dos 100 mil; prisões e torturas; resistência e mortes… – Pelo menos, não houve para mim. Eu nasci em 1969. E o homem andava na Lua. O apostolado foi meu primeiro opressor. Tinha ficha na igreja. E todos aqueles azulejos e vitrais: anjos com expressões ameaçadoras; serpentes e demônios; cabeças decepadas por espadas… Davam-me ainda mais pavor – Até a obra de Deus foi arrolada na batalha.

Cineasta Ruy Guerra (E) com o cantor e compositor Chico Buarque (D0, em 1973, com o cartaz do musical ‘Calabar’ ao fundo

Cineasta Ruy Guerra (E) com o cantor e compositor Chico Buarque (D0, em 1973, com o cartaz do musical ‘Calabar’ ao fundo

Eu cresci rodeado de cidadãosmochos, Inominados. Heróis, nunca! A garantia era estar vivo… – Só a subversão podia me redimir daquela humilhação. Vivíamos em dois “Brasís”; e o meu era o do “EuTe Amo, Meu Brasil; eu te amo”… – Aquela falsa propaganda, veiculada à exaustão, feriu de morte os nossos sonhos.

Cantávamos o Hino Nacional, perfilados no pátio do Colégio Estadual Pedro Aleixo (um udenista mineiro que se aliara às forças armadas), às quintas-feiras, enquanto a bandeira brasileira era hasteada. Ao final da encenação, voltávamos para as salas de aula, onde nos doutrinávamos com a “Moral” e o “Civismo”. Viramos colecionadores de selos de ex-presidentes e figurinhas da copa de 74… – Como bons filhotes da ditadura.

As TVs exibiam uma programação alienadora; as músicas de Roberto Carlos eram aprovadas; e as pornochanchadas passavam no cinema do Prado… – Enquanto isso, os milicos fodiam o país. – E nada de saraus. Qualquer expressão artística era censurada. A criatividade estava subordinada ao autoritarismo. O resto era contravenção: beijos na escadaria do colégio; uma melodia assobiada de Chico; versos rabiscados no guardanapo… – Só depois alguém reproduziu poemas mimeografados. A imprensa vivia sob a lei da mordaça.

Não vi Calabar, de Ruy Guerra e Chico Buarque. Lamarca e Marighella eram sobrenomes proibidos. Só li Os carbonários, de Alfredo Sirkys, em 1985. Assim, de costas para a realidade, apenas imagens refletidas… – Qual era o meu Brasil? – Antes da resposta, a ditaduraacabou… – Por ela mesma. Não quero contar mentiras para meus filhos, pode parecer que ainda estou me escondendo. Embora, ainda há caudilho escondido no vergel.

Espero no dia em que a coragem vai nos rebelar e seremos um só bando: heróis, covardes e inocentes. Só não indulto os ímpios. Então, fica decretado que nesse dia (dia de nossa fortuna), marcharemos nus e reegueremos cada período destruído.

Ao exílio, condenaremos os aniquiladores de nossos gozos. Não gritaremos palavras de ordem, mas também não estará proibido.

Reabriremos todas as portas e ressuscitaremos os mortos de boafé. Daremos a cada poeta o direito à declamação ao ar livre. Vandré será nosso alto-falante. Os generais serão deportados; e para cada soldado uma flor. A parada de sete de setembro deixará de existir; ao invés disso, um berro de independência. Nada de ordem e progresso – Respeitaremos as diferenças. A religião será o pão de cada dia. Um minuto de silêncio será respeitado para qualquer funcionário público que for declinado à sepultura. 1964 será proclamado o ano que não existiu; assim como as baionetas e os camburões. O novo regime será a liberdade; e o presidente Carlos Drummond de Andrade.

(*) A coluna Funes Cultural vem homenageando escritores patoenses com publicações de textos e biografias. Em fevereiro, o homenageado é o escritor e jornalista Misael Nóbrega de Sousa, autor de obras como: O Fantoche (poesia), Espelho (poesia), Cinza das Horas (poesia), A Pedra do Imã (conto), Folhas do Álamo (reflexões), Colcha de Retalhos (crônicas) e A Rua Grande de Meus Pais (crônicas).