Gente da Rua da Cruz
4 de setembro de 2023Gente da Rua da Cruz por Jerdivan Nóbrega de Araújo.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 01/09/2023.
Quando o silêncio da madrugada era rompido pela voz de Pixico, acompanhada pela viola de Bideca, janelas se abriam para que os acordes passeassem suavemente por todos os quartos, salas e cozinhas. Uma voz e um dedilhado de viola que desciam da Rua da Cruz para o deleite das classes mais bem localizadas: o único elo entre duas classes sociais completamente antagônicas.
Rua da Cruz, da voz de ouro de Pixico e das maiores ceramistas da região. Eram artistas como Dona Lica, mãe de Dora de Filemon, Negra Gera, como carinhosamente a gente chamava, mãe de negro Paulo e Sofom, casada com Zé Bezerra, Zulmira, casada com Biuzão, aquele que toda noite dormia em pé em frente ao Cine Lux, na primeira sessão noturna, acordando sempre ao termino da segunda sessão, sempre no mesmo local, esquina da casa de Dr. Avelino Queiroga.
Maria, esposa de Bembém, Regina e suas meninas, que além de ceramistas, cultuavam o folclore de imagens infantis moldadas no barro, tais como bois, vacas, jumentos, caboclos e caboclas, bonecas e animais em profusão de cores; tudo o que vivenciava o imaginário infantil. Jubinha e sua esposa eram, também, dois ceramistas de mãos cheias; sem falar de Dona Biu, esposa de Zé da Rosa, grande pescador, pai de Corró e Gesci.
Nesse núcleo de produção, várias famílias da Rua da Cruz se dedicaram à fabricação de mercadorias de uso doméstico. O objetivo era servir a população através da disponibilidade de diversos vasilhames utilitários, usados no dia a dia das atividades domésticas do nosso povo. Eram potes, panelas, pratos, copos, agridais, xícaras, chaleiras e até filtros de água, todos manufaturados pelas mãos habilidosas dos moradores. A produção, que era comercializada aos sábados, encantava os locais e os turistas.
A Rua da Cruz abrigava, ainda, um dos mais importantes grupos folclóricos da cidade: O reisado. Eram dessa comunidade: Chico Espalha, Seu Bembém, Papagaio de Euclides (doador de sangue universal e inimigo número um do uso de camisas), “Bode Velho”, Fael, Maria de benigna com os seus porres, o padeiro Severino de Adilia, “Doutô Espalha” (grande violonista, músico dos bons, como todos os Espalhas), Reizinho do Cal, Zé de Souza do depósito de madeira, Zé Branco da Bodega, Joda (figura ímpar no carteado), Tié, Zé de Bú, Mané das Broas, Júlio Barbosa, Leônidas da padaria (vendida a seu Oliveira), Chico Mascena, Zé Herculano, Mané de Bomba, os cachaceiros Valério e Estelita, Zé Canhin, Miquiquio, Zuruê, Negro Índio, Nego Tanga, Cachorra Velha, Tuzin de Jubinha e tantos outros que fizeram a história da Rua da Cruz.
Lar para profissionais das mais diversas especialidades. Havia pintores de parede, pedreiros, ceramistas, pescadores, flandeleiros, como os irmãos Lau e Otávio, esgotadores de fossas, pegadores de passarinhos, caçadores, carpinteiros e agricultores.
Bons tempos da Rua da Cruz de casas humildes e esparsas, construídas em taipas e sapé, com seus terreiros de chão batido e sem iluminação pública, mas com sinalizações em suas entradas de que ali era um lar. Onde, à noite, as estrelas desciam para alegrar as histórias contadas à luz de lamparinas, embalando os sonhos dos jovens e adultos que lutavam pela sobrevivência, a cada dia carregando a sua cruz, sem jamais perder alegria de viver.
Ainda consigo ver as marcas do sofrimento de suas vidas estampando seus rostos em forma de rugas.