Elza é o Brasil

Elza é o Brasil

24 de março de 2022 Off Por funes

Elza é o Brasil  por Delzymar Dias.

 

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 04/03/2022.

 

Elza fez do canto a sua vingança. Escolhida a voz do milênio pela Rádio BBC, nunca gostou de falar muito do passado. Quando provocada, dizia que o passado já se foi, my name is now (“meu nome é agora”), foi o título do documentário premiadíssimo estrelado por ela e dirigido pela cineasta Elizabete Martins Campos (iT Filmes, 2018). Esse senso de urgência e intensidade que encontramos em toda a obra de Elza é também resquício de um passado impossível de dissociar da sua vida e da sua carreira.

A história de Elza Gomes da Conceição é também a história de um Brasil esquecido e muitas vezes invisível. Com apenas 12 anos, foi obrigada pelo pai a se casar. Os efeitos do casamento infantil foram brutais em sua vida. Ainda muito jovem, Elza fica viúva, tendo visto dois dos seus filhos morrerem ainda pequenos, vítimas das péssimas condições de vida que a família possuía.

 O casamento infantil não é uma realidade apenas do passado. Ainda hoje, o Brasil ocupa a 4ª posição no ranking de casamentos precoces no mundo, perdendo apenas para Índia, Bangladesh e Nigéria. Essa prática é responsável pelo abandono escolar precoce de aproximadamente 30% das meninas, que também ficam mais expostas a violências físicas e psicológicas, como foi o caso de Elza.

Desde 2019, o Código Civil Brasileiro proíbe o casamento de menores de 16 anos de idade. Apesar da aprovação da lei ter sido um avanço, ainda existem milhares de adolescentes nessas condições. A fome é outro capítulo que aproxima a história de Elza com a trajetória de parte significativa do povo brasileiro. É ela que impulsiona a artista no sentido de ir em busca de sustento através do seu talento. Ao chegar até a Rádio Tupi para participar de um show de calouros. O público debochou do seu cabelo e da sua roupa simples e desajeitada.

O compositor Ary Barroso que apresentava o show faz uma pergunta que vai marcar o início da sua carreira. Ao ser questionada de que planeta ela viria, Elza solta a voz e diz: “Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. O planeta fome!” O público para diante dessa resposta e escuta com atenção a voz daquela que iria marcar a história da música brasileira. Atualmente, quase 20 milhões de brasileiros sofrem com insegurança alimentar grave e as recentes políticas governamentais vêm sendo insuficientes para estancar esse absurdo e retirar essas pessoas dessa condição de miserabilidade social.

Quantas Elzas existem por aí? No início da vida e da carreira, Elza enfrenta não apenas a fome, mas também o conservadorismo patriarcal de uma sociedade que não via com bons olhos uma mulher artista. Essa violência patriarcal quase leva Elza à morte. Tomou dois tiros do primeiro marido que não aceitava sua condição. Um dos tiros pegou no braço da cantora, que não teve coragem de denunciar o marido, talvez por entender que não aconteceria nada pelos costumes da época ou que isso representaria mais um motivo para perseguição. Essa postura muda e quando Elza ressurge como A mulher do fim do mundo (2015), em um disco que marca um retorno avassalador da cantora, encontramos entre as faixas desse álbum histórico, uma música com o título de ‘Maria de Vila Matilde’, que estimula as mulheres a denunciarem todos os tipos de agressão.

A canção é tão forte que se tornou uma referência no combate à violência doméstica. Esse disco mexeu nas estruturas do mercado musical, recebendo dezenas de avaliações positivas no Brasil e no exterior, fazendo com que a cantora ganhasse seu primeiro Grammy Latino como Melhor Álbum de Música Popular Brasileira. Um dos sambas mais fortes que Elza cantou foi ‘Quero morrer no Carnaval’, da cantora e compositora Linda Batista.

 A letra fala em morrer sambando, com o povo na rua cantando. Elza Soares morreu um pouco antes do Carnaval. Cantou até o fim, como era o seu desejo. Dois dias antes de partir, gravou um DVD e deixou dezenas de shows agendados pelo Brasil. Em novembro de 2020, o atual governo brasileiro fez uma manobra e excluiu, através de portaria publicada no Diário Oficial, o nome de Elza e de mais 26 personalidades negras que integravam o livro da Fundação Palmares, instituição responsável por difundir e preservar a cultura afro-brasileira. Não importa.

 O mundo se rendeu ao talento e a voz única de Elza Soares, que, em vida, teve a oportunidade de fazer-se e refazer-se em diversos momentos diferentes. Elza é o Brasil das dificuldades, mas também da esperança e do renascimento.