A primavera nordestina

A primavera nordestina  por Delzymar Dias.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 30/06/2023.

Mário de Andrade dizia que o som e o ritmo como elementos formais da música são tão velhos como o homem. A voz produz o som ao passo que o ato de respirar e os movimentos do coração formam um ritmo. Ele nos apresenta algo que une o ser dito primitivo com o que convencionouse chamar de contemporâneo. A cultura musical nos conecta desde sempre com o ambiente de vivências que estamos inseridos.

Ilustração
feita a grafite
intitulada
‘Raízes’,
produzida
pelo artista
patoense
Roberto Nass

A música e a cultura nordestina estiveram no centro de debates e discursos acalorados que tomaram conta da grande mídia nos últimos dias. O eixo dessa discussão é a grandiosidade dos eventos juninos que possuem cada vez menos o ritmo que consagrou a festa. Isso já era muito discutido por aqui, porém, a partir do episódio no São João de Campina Grande envolvendo os shows de Flávio José e Gusttavo Lima, o tema furou a bolha, como dizem atualmente, o que provocou uma onda gigante de apoio ao paraibano.

O Sul e o Sudeste não entendem o Nordeste. Não compreenderam o simbolismo de Canudos, não conseguem enxergar a importância do 2 de julho na Bahia para a independência, de fato, do Brasil e nunca se esforçaram para entender as complexidades em torno do banditismo social que o cangaço representa no imaginário popular da nossa região.

A questão não é apenas sobre música. O São João não é só sobre música. Não se trata apenas de uma festa, é uma vivência coletiva baseada em nossas experiências históricas, sociológicas e antropológicas. Uma espécie de tempo de graça. Quando escutamos o poema triste partida que foi musicado a partir da obra de Patativa do Assaré, vivenciamos a história de todos os nordestinos que migraram para o sudeste e nunca conseguiram voltar. Todo nordestino tem na família uma história de triste partida. Esses versos rasgam as nossas entranhas com choro e gemido de quem nunca quis partir. São dores que se misturam. A dor de partir é tão intensa como a dor de nunca conseguir voltar. São nossas migrações cantadas.

Em ‘Asa Branca’, nosso hino, de autoria de Luiz Gonzaga e Luiz Ramalho, a devoção em um Deus misericordioso vai se transformando em uma clemência questionadora quando ele diz: “Eu perguntei a Deus do céu, uai / Por que tamanha judiação?”. Em ‘Súplica Cearense’, o lamento é de outra natureza. “Oh! Deus, será que o senhor se zangou / E só por isso o sol arretirou / Fazendo cair toda a chuva que há”. O poeta Leandro Gomes de Barros também chega ao limite do questionamento ao perguntar “quem foi temperar o choro, e acabou salgando o pranto?”. Até a nossa relação com Deus, baseada no “temor questionador”, está presente em nossa cultura popular.

Defender a possibilidade de manutenção da identidade cultural de um povo ou região, não é, necessariamente, estar apegado ao conservadorismo anacrônico que permeia a sociedade atual. Mudanças e adaptações são absolutamente normais em uma nova conjuntura dominada pelos serviços de streaming e pelas festas produzidas a partir das parcerias público-privadas. Tudo muda e isso é inevitável. Os grandes eventos musicais brasileiros, são, em sua maioria, plurais. O primeiro artista a subir no palco do Rock in Rio, em 1985, foi o genial Ney Matogrosso, que, vestido de tanguinha de onça, com pena de gavião na cabeça e uma queixada de boi na mão, teve que enfrentar a resistência de alguns poucos metaleiros que insistiam em jogar ovos no palco para atingi-lo.

A questão atual desse debate aqui no Nordeste é o modelo da festa como um todo, que continua sendo vendido como festa popular, ao mesmo tempo em que amplia o número de camarotes e áreas VIPs. Com a redução do tamanho da área destinada à população sem passaporte, estamos percebendo episódios, cada vez mais corriqueiros, onde as pessoas invadem o local destinado ao público não pagante e derrubam as grades de proteção para acompanhar os shows. Existem cidades que não estimulam a participação de atrações locais, não integram a festa aos estudos sobre cultura regional nas escolas e não possuem uma sensibilidade para dialogar com os segmentos culturais locais para garantir que o evento tenha o mínimo de pluralidade.

É bom que esse debate aconteça, até porque, existem questionamentos válidos a serem levados em consideração. Precisamos convidar gestores, produtores culturais, artistas e a população como um todo para, juntos, construirmos uma proposta que mantenha a festa grandiosa, plural, com utilização de poucos recursos públicos, mas, que não deixe de lado aquilo que consideramos importante para a nossa identidade cultural regional.