A Irmandade dos Negros do Rosário
16 de junho de 2023A Irmandade dos Negros do Rosário por Jerdivan Nóbrega de Araújo.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 16/06/2023.
Os negros, mesmo escravizados, tinham da parte da Igreja a liberdade para cultuar os santos católicos. Porém, não para administrar as confrarias ou as irmandades que, apesar de não terem como finalidade confrontar ou organizar resistências ou mesmo a luta contra a escravidão, não deixaram de possuir um papel ativo no sentido de coibir os abusos inerentes à escravidão e de buscar soluções para os problemas da população negra.
Outrossim, a Igreja não permitia que os negros cultuassem as suas religiosidades nativas. Quando não era ela própria o “estado”, era o seu elo de repressão, e, durante os primeiros séculos de formação da sociedade brasileira, o catolicismo exerceu total e completo poder de coerção sobre qualquer outra prática religiosa ou expressão cultural, não admitindo que negros escravizados viessem a exercer as suas crenças religiosas sem que houvesse a estrita fiscalização da Igreja e do Estado.
Sabia-se que os negros inteligentemente camuflavam suas manifestações religiosas, dissimulando as crenças africanas ao culto católico, razão pela qual, no ato da autorização de criação, as irmandades recebiam do clero um Estatuto e a determinação de que a administração, inclusive financeira, era função dos brancos indicados pela Igreja.
Nos recantos mais distantes dos sertões nordestinos, essas manifestações já existiam muito antes do reconhecimento pela Coroa Portuguesa e mais tarde pela Igreja. Face às dificuldades de organização ou à oposição dos religiosos locais, poucas foram as registradas oficialmente.
Na cidade de Pombal, a denominação adotada pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, ou Irmandades de Pretos, foi de Irmandade dos Negros do Rosário, da mesma forma que aconteceu em Jardim do Seridó, Caicó, Serra Negra e Boa Vista, cidades do Rio Grande do Norte, e em outras cidades situadas do Vale do Piancó aos Vales do Piranhas, do Sabugi e do Patu.
Nessas localidades distantes e de difícil comunicação, antes da autorização eclesiástica, os negros escravizados já se organizavam informalmente em Irmandade para cultuar o rosário e talvez até já realizassem os seus festejos em locais reservados longe da vista dos seus senhores. É isso que sugere o primeiro compromisso da Irmandade dos Negros do Rosário de Pombal, sancionado pelo presidente da província, Pedro Francisco Corrêa de Oliveira, através da Lei civil n° 858, de 10 de novembro de 1888, compondo-se de 60 artigos distribuídos em 12 capítulos.
Para compreender a criação da Irmandade dos Negros do Rosário de Pombal e deduzir a data e as circunstâncias da sua criação, faz-se necessário traçar um paralelo da realidade socioeconômica-políticogeográfica e religiosa de toda a região, que vai destacar o cenário no qual foram criadas as suas congêneres do Vale do Seridó, Rio Grande do Norte, cuja data mais aceita pelos estudiosos para a elaboração dos seus compromissos é a de 16 de junho de 1771. Existe um hiato temporal entre a data dos compromissos das Irmandades, que é a data oficial de elaboração dos estatutos, ou seja: aquela na qual a irmandade pleiteia o seu status jurídico, confirmando, assim, sua existência pela Coroa, no caso o Rei de Portugal, D. José I, ao momento em que o Estatuto retorna ao Brasil devidamente autorizado. Portanto, a data de realização da primeira reunião que tornou público o reconhecimento da Confraria dos Negros de Caicó e região, através de sessão solene, foi em 27 de dezembro de 1773, data essa em que foi instalada a primeira mesa administrativa.
A realidade socioeconômica-político-geográfica e religiosa da região no período citado nos sugere que as comunidades negras da região do Vale do Seridó rio-grandense, que agregavam os negros das comunidades de Jardim de Piranhas, Acari, Parelhas e Jardim do Seridó, todas polarizadas por Caicó, sofreram a influência das comunidades mais a Norte de Pombal, no Vale do Piancó.