Homens comuns

9 de dezembro de 2024 Off Por Funes Patos

Homens comuns Por Delzymar Dias.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 06/12/2024. 

 

De onde vem a crueldade? Como é possível tantas coisas ruins acontecerem em proporções tão gigantes? Nazismo, genocídios, guerras, crimes contra a humanidade e explorações de todas as ordens só ocorrem por causa dos homens comuns. Dizer que tudo isso é obra de criaturas malignas, monstros ou fruto de um mal difuso é não enxergar a realidade. Nada disso foi feito por monstros, são homens comuns que executam tarefas, conscientemente, e que entendem que estão apenas “cumprindo o seu dever”, sendo incapazes de fazer qualquer tipo de avaliação moral ou ética sobre isso.

Na Alemanha do holocausto, comerciantes, médicos, engenheiros, fotógrafos, professores, advogados e outros profissionais juntaram-se ao exército nazista para executar tarefas brutais. Hitler não puxou sozinho todos os gatilhos, ele soube conduzir e manipular os homens que buscavam saciar o desejo de violência com justificativas que tentavam eliminar qualquer senso moral de culpa. Os grupos de judeus que eram levados para as câmaras de gás, ou as pessoas que eram encaminhadas para o fuzilamento, estavam sendo conduzidas por homens que ostentavam uma posição social de destaque. Eram “homens de bem”, pessoas comuns que frequentavam igrejas e oravam agradecendo a Deus pela sua vida e que se orgulhavam em servir a pátria e a ideologia dominante.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis traz uma ironia sagaz ao descrever Cotrim, cunhado do defunto-autor (e não do autor defunto), dizendo que Cotrim “era muito seco de maneiras, tinha inimigos que chegavam
a acusá-lo de bárbaro. O único facto alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero
de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única”. A ironia de Machado de Assis é evidente ao apontar Cotrim como um “cidadão de bem”, mesmo citando as diversas barbáries a ele atribuídas como fruto das relações sociais da época.

No Brasil colonial, havia os “homens bons”, que eram pessoas influentes e grandes proprietários de terras que detinham o controle do poder político nas localidades. Não estavam preocupados com justiça social e conviviam tranquilamente com as distorções e explorações que ocorriam contra os negros escravizados e os indígenas desumanizados.

Aprendemos a naturalizar a desumanidade como força das relações de cada período. Precisamos retomar discussões básicas sobre princípios que envolvam a dignidade da pessoa humana como ponto principal de qualquer relação, seja ela social, ética, educacional, histórica, política ou cultural.