As portas coloridas de Dublin

7 de maio de 2024 Off Por Funes Patos

As portas coloridas de Dublin Por Delzymar Dias.

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 03/05/2024.

 

Uma das funções do historiador é lidar com as informações que chegam a partir das fontes confiáveis que estão disponíveis. Na era das redes sociais, nosso ofício está em decadência. Ninguém se preocupa muito de onde vem as versões das histórias que chegam através do TikTok, Instagram ou YouTube, o que importa é o corte de 15 segundos que gera o like e o lucro.

A monetarização das redes sem que haja nenhum tipo de controle gera uma situação complicada e estranhamente bizarra, já que vídeos com chamadas, imagens ou cortes flagrantemente falsos ou distorcidos são impulsionados, gerando ganhos financeiros para a plataforma e para os donos dos canais. Com as redes sociais, o por quê entrou em
desuso. Na universidade, bem no início do curso de História, aprendemos sobre a importância disso através de matérias introdutórias e autores clássicos como Edward Hallet Carr, que diz que “o grande historiador – ou talvez devesse dizer mais amplamente, o grande pensador – é o homem que faz a pergunta por quê? Sobre coisas novas ou novos contextos.”

A circulação de informações através do mundo virtual produz um tipo de viralização assustadora de conteúdos. Em muitos casos, existe um apelo proposital de crueldade disfarçada de informação. Em 2018, mais precisamente na noite do dia 14 de março, foi assassinada de maneira brutal a vereadora e ativista dos direitos humanos, Marielle Franco. Junto a ela, morreu também o seu motorista, Anderson Gomes. Quatro tiros de fuzil na cabeça e milhares de notícias falsas sendo compartilhadas sobre ela enquanto o seu corpo nem tinha sido retirado ainda do veículo. A cantora Preta Gil descobriu um câncer violento no intestino e depois de uma série de tratamentos divulgou que estava curada. Ainda hoje, Preta é usada em imagens do tipo clickbait, que faz parte de uma estratégia que usa imagens e títulos chamativos para monetizar conteúdos on-line, anunciando uma falsa morte da cantora que está recuperada, viva e bem.

A história das portas coloridas da capital da Irlanda tem duas versões possíveis

 

Essas mentiras servem a um contexto político que domina as redes sociais. A propagação de conteúdo falso sobre vacinas geram uma procura menor por imunizantes nos postos de saúde, causando mortes, redução da cobertura vacinal e retorno de doenças que estavam controladas. Sabemos bem quem lucra politicamente com a disseminação dessas mentiras. Como funciona a manipulação das informações históricas hoje? Alguém não gosta do avanço das pautas do movimento negro, então pega a sua maior referência e tenta desconstruí-lo para favorecer o seu bloco político. É isso que acontece em relação à versão de que Zumbi, o líder do Quilombo dos Palmares, seria um senhor de escravos. Essa versão, sem nenhum documento, relato ou fonte objetiva, ganha força exatamente no momento que o movimento negro consegue avançar suas pautas no âmbito institucional, como a adoção da Lei de Cotas, a demarcação de terras quilombolas, a Lei nº 10.639 que garante a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas, a lei que tornou crime o racismo e a injúria racial, enfim, é um método que encontra na internet um território sem os por quês que abordamos no ínicio do texto, já que, na bolha dos seus seguidores, você prega para um grupo de convertidos. Nesse sentido, a desconstrução do passado atende a interesses políticos do presente.

Esses dias recebi um cartão-postal de um casal de amigos que foi fazer intercâmbio na Irlanda. Era uma fotografia das famosas portas coloridas de Dublin. Sobre isso, existem duas versões. A primeira, diz respeito a um protesto contra uma recomendação da Rainha Vitória pela morte do seu marido, o príncipe Albert. Quando ele faleceu em 1861, a rainha teria ordenado que todos colocassem bandeiras pretas na fachada das casas. Durante a noite, um rebelde deu vida e cores às portas como forma de contraste, sendo seguido por outros moradores. A segunda versão é de que era comum pessoas confundirem a entrada das casas, já que elas eram muito parecidas. Esse problema ocorria principalmente à noite, quando era comum homens levemente alterados entrarem em residências que não eram as suas. As portas coloridas viraram um elemento de diferenciação.

Como é bom falar de amenidades. Essa história do cartão-postal e das versões sobre as portas coloridas de Dublin me remete a um tempo onde as versões não serviam, necessariamente, a um processo bárbaro e contínuo de destruição. A história sempre foi um campo permanente em disputa, sendo que hoje, ela não acontece mais como acontecia antes. Ninguém precisa escrever uma tese para mostrar e embasar o que pensa. A argumentação perdeu espaço para os quinze segundos de tela, de like e de lucro.