Sou eu (1)
22 de abril de 2025Sou eu (1) por Perônico L
Texto extraído da coluna FUNES do Jornal A União publicado na data de 18/04/2025.
Foi andando no viaduto que eu me encontrei, vagamente me lembro da situação, dores fortes de cabeça, uma ressaca da vida, ainda era madrugada, sem ninguém, ninguém. Uma rasga-mortalha passou no alto, olhou na minha retina de cima para baixo, então decidiu gritar, talvez avisando sobre a morte de alguém. Eu estava com medo de presenciar um acidente de carro, tiros ou alguém tentando pular o viaduto. Estava com uma cartela de Marlboro no bolso direito e no esquerdo estava o isqueiro. Lembro-me daquela frieza da noite, pelo menos protegido do frio me encontrava, vestia um casaco preto e uma calça jeans, calçava tênis branco, porém, por conta da sujeira, parecia um marrom, meus ouvidos estavam tampados por fones que ressoavam intensamente uma música, “Carmen”, do cantor Stromae. Enquanto vivia minha vida, percebi que tinha acabado de me encontrar, em algum lugar me encontrei! Provavelmente enquanto fumava.
O cigarro é nada gostoso, mas me faz parecer com algo, a nicotina é seduzente e sou parecido com ela. Se eu morrer por conta disso, eu morrerei desgastado, porém achando graça, se essa cartela fosse nos dias de hoje, eu fumaria toda, até o talo! Para ser sincero, o que eu vi foi importante para mim: eu consegui ver a ave rasga-mortalha sendo atropelada por um carro, de fato foi um acidente, porém, algo não tão significante, é apenas uma ave. Mas o que me chamou atenção foi que ela avisou sobre sua morte, tinha gritado minutos antes, se sabia que iria ser atropelada, por que não desviou do carro? Isso me atingiu por mais besta que fosse. Enfim! Cheguei em casa.
Descansei, isso não implica dizer que eu tenha dormido, passei a madrugada bebendo cachaça, cada gole era uma pena daquela “coruja” entalada na minha garganta, era misturada com seus pedaços, tornando a minha bebida predileta intragável. No dia seguinte, acordei e tomei um café bem forte, fumei meu cigarro e fui para o trabalho. Sou garçom num bar daqui de João Pessoa, perto daquela parede pichada com: “Eternas saudades, Manu”. Desconheço essa Manu, mas minha mente já cria esse cenário tão comum de perda e desesperança. Tornei isso tão neutro, que pareço até um monstro, sou um monstro. Na verdade, o monstro não sou eu! O monstro dessa história é o prefeito, que não dá moradia e nem liga para o povo, ainda por cima nem se importa com a morte dessa Manu, nunca nem ajudou o povo das favelas, hipócritas! (Isso tudo não vem ao caso, continuemos…) No caminho para o trabalho, vi um menino com uma balinheira, mirando em algo, olhando na direção desse alvo, vejo rapidamente um pombo, ele é acertado em cheio por uma pedra pontiaguda, que perfura sua asa e estraçalha seus órgãos internos.
Caído no chão quente, o pombo foi neutralizado pela inutilidade da morte, o menino pegou o defunto num tom não tão agradável, num tom de fome! Vendo o biotipo do garoto, percebe-se sede e fome por trás de alguns sorrisos (talvez o pombo não seja tão inútil). O menino, com certeza, comeria com gosto, tendo em mente a frase: “Dever cumprido”. Peguei meu Marlboro, tirei um dos cigarros, fumei, passei do lado do pirralho sem nem olhar para ele e nem para o pássaro, talvez… isso me dói.
Chegando no bar, tive que pegar algumas comandas e entregar na cozinha, levava comidas e bebidas alcoólicas para os clientes, ajudava também os cozinheiros e assim fui seguindo até o fim de tarde. Até que, quando estávamos fechando o bar, apareceram dois caras com capacetes. Tentei avisar que já tínhamos fechado, porém eles não queriam bebida nem comida, eles queriam a alma do Gabriel, um dos garçons, ele tinha seus 16 ou 17 anos, morava com a mãe e trabalhava para ajudar a pagar os remédios que ela tomava, entretanto, o bar não foi o suficiente. Ele paga água, luz, aluguel e ainda ajuda na comida, teria de arrumar outro trabalho, surgiu então uma grande oportunidade, surgiu a venda de drogas, o tráfico, traria uma vida melhor para ele e para a mãe, conseguiria comprar os remédios e os alimentos, não foi uma escolha, foi sobrevivência, foi riscos. Custou caro, nada barato, ele se viciou na própria droga e se perdeu no caminho, se endividou com o tráfico e já estava marcado, esperava então somente a morte e a morte apareceu. Talvez assim a parede da esquina ganharia uma nova pichação, escrita: “Saudades, Gabriel”. Eu fiquei pensando na mãe dele. Já estava escurecendo (teria que voltar para casa), amontoava gente ao redor do corpo, amanhã será o velório.