Desabafo do cotidiano
11 de dezembro de 2023Desabafo do cotidiano por Zenilda Lua.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 08/12/2023.
Meu pai Agreste se foi bem cedo. Cativo do álcool, abriu todas as torneiras do desafeto e nos deixou numa véspera de domingo ao entardecer. Meu pai católico, provedor de versos curtos, soltador de fogos de artifício e pescador de primeira. Tinha voz terna e um cheiro diferente que eu infante desconhecia a procedência. Quando mais tarde, dando falta dos versos solfejados e dos risos frouxos em dia de festejo em família, entendi a rudeza daquela fala, o olhar embotado, as frases sem um pingo de meigura, fui pesquisar sobre alcoolismo, e passei a detestar aquele cheiro com a maior força que a verdade pode guardar.
Meu pai abortou as nossas passagens mais engraçadas. Proibiu flores e cantigas. Ficou sovina. Suspendeu sentimentos essenciais e por muitas vezes fez de sua presença um incômodo. Estendíamos a fita de cor para refazer os laços que a bebida havia esgarçado, ele adormecia e nunca dava confiança às nossas súplicas por sobriedade. Fortalecendo na gente aquela dor amargosa e deselegante tão cotidiana.
Não chorei a morte do meu pai. Suas escolhas recalcaram minhas lágrimas, paciência, e fonte de ajuda. Após deixar seu corpo na lápide dois do cemitério São Miguel voltei para casa descoberta e forte. Guardei seus chinelos e o lençol que cheirava cigarros. A rede de pesca, arreios e sela, atrás da porta, adornavam silenciosamente aquela tarde salobra.
Minha memória revirava a casa e não encontrava uma linha tênue de afago paterna. A ponta de afeto mais fina que fosse propiciar uma saudade futura. Meus quatro irmãos e minha mãe choravam quando os abracei e saí indecifrável.
Entendi posteriormente que tudo aquilo foi aprendizado necessário para fortalecer minhas intenções. O quanto a literatura foi importante naqueles tempos espinhosos de aconchego falho, liberdade negada, falta de despedida e bênçãos. Tudo aquilo promoveu em mim o desejo sóbrio de cuidar mais das pessoas, perceber a família como base detentora de valores que regem nossa vida e história.
Pobre meu pai! Sem convenção espiritual ou intelectual perdeuse nas teias venosas da caminhada etílica e não conseguiu atravessar a ponte do bem viver.
Ouvindo Chico Buarque numa dessas manhãs de céu vivíssimo e quentura dócil, lembrei-me dos olhos claros que meu pai tinha e, desprovida de remorso ou dor, chorei sozinha.
Depois de te perder
te encontro com certeza
talvez num tempo de delicadeza
onde não diremos nada
nada aconteceu
apenas seguirei como encantada, ao
lado teu…