Massarandupió
21 de agosto de 2023Massarandupió por Delzymar Dias.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 18/08/2023.
É uma tarefa complicada escrever sobre Chico Buarque em um texto curto. Cantor, compositor, dramaturgo, escritor e poeta, escreveu sobre sua formação em Paratodos, letra na qual aborda suas múltiplas raízes onde seu pai é paulista (Sérgio Buarque de Hollanda), seu avô pernambucano (Cristóvão Buarque de Hollanda), o seu bisavô mineiro (Cesário Alvim) e seu tataravô baiano (Eulálio da Costa Carvalho). Em sua última turnê que rodou o Brasil, fez questão de encerrar cada show com a música João e Maria, trabalho fruto da parceria com o multi-instrumentista paraibano Sivuca, nosso poeta do som.
Pelas salas de aula, pelas análises literárias, pelos artigos de jornal, pelos suspiros apaixonados, pela história da música brasileira, é possível entender a construção simbólica do que se tornou o filho de Sérgio Buarque de Hollanda? A primeira questão faz referência ao período ditatorial vivido pelo Brasil entre os anos de 1964-1985. Do ponto de vista cultural, é importante ressaltar que existe um momento antes do Ato Institucional nº 5 (AI-5), editado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva e um momento depois dele. Até a publicação desse que foi o mais duro dos atos ditatoriais e institucionais, a produção artística e cultural seguia, fazendo de cantores, compositores, cineastas, escritores e teatrólogos, porta-vozes daqueles segmentos que foram silenciados nos primeiros anos depois do golpe de Estado.
Apenas nesse período, 168 deputados foram cassados, perdendo não apenas os mandatos, mas também todos os direitos políticos. Além de parlamentares, 57 membros de pastorais católicas e igrejas cristãs protestantes que denunciavam o estado de exceção e acolhiam os perseguidos políticos foram presos, isso apenas no ano de 1968. Sendo assim, artistas como Chico Buarque deixaram de ser apenas cantores, assumindo, mesmo com todos os riscos, a condição de porta-voz de uma sociedade que resistia para continuar existindo.
Nesse tempo, uma página infeliz da nossa história, Chico era explícito sem ser. Muitas letras foram escritas nos contextos dessas dores provocadas pela ditadura. Sim, ele conseguiu cantar essas dores. Conhecido como o poeta das mulheres, referência adquirida pelas canções que falam sobre o amor apaixonado, tambémpercorre um caminho dolorosono que diz respeito às dores marianas de mães que perderam seus filhos. É de rasgar o coração relembrar a cena da mãe de um grande amigo que faleceu em 2013 e que ao chegar ao velório do filho, se jogou em cima do caixãocantando e bradando versos de Pedaço de mim. Escutar a letra de Angélica é mergulhar no universo dos desaparecimentos forçados, da tortura e dos assassinatos ocorridos durante a ditadura. Ele questiona através dessa canção: “Quem é essa mulher, que canta sempre o mesmo arranjo? Só queria agasalhar meu anjo e deixar seu corpo descansar”. As duas músicas citadas acima fazem referência a Zuzu Angel, que teve seu filho, Stuart Angel, preso, torturado e assassinado pelo regime em 1971. O corpo nunca foi achado e ela nunca teve o direito de chorar sob o seu túmulo. A estilista passou cinco anos sofrendo e denunciando o crime cometido contra o filho, até que, em 1976, também foi assassinada.
Chico nos faz enxergar o mundo e a história do Brasil a partir de outros olhares. Seja através das músicas ou das construções teatrais, como fez em Calabar — O elogio da traição, onde ele discute a alteração das posições oficiais de Domingos Fernandes Calabar, que lutou ao lado dos holandeses nas invasões de 1632, fazendo um paralelo com a história do capitão Carlos Lamarca, militar do Exército Brasileiro que lutou contra a ditadura de 1964, seja através dos vários romances premiados, a exemplo de O Irmão Alemão, onde ele resgata memórias familiares, como a relação de adoração e, ao mesmo tempo, distanciamento que tinha com o seu pai, o grande historiador Sérgio Buarque de Holanda. Nesse livro, ele faz questão de brincar com aquilo que é real e com a ficção, ao narrar uma busca a partir da descoberta de uma carta guardada no meio de um livro e que indicaria que o pai teria tido um filho na Alemanha antes de se casar com a sua mãe.
Frei Betto já disse que se do barro o Criador fez alguém com tanto amor, foi Chico. Ao amor, certamente o Criador adicionou pitadas de genialidade e doses significativas de uma sensibilidade para escrever e reescrever sobre as histórias, as memórias e os momentos.