A fome
1 de julho de 2022A fome por Delzymar Dias.
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 01/07/2022.
Voltamos a falar sobre a fome. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, mais de 33 milhões de brasileiros vivem essa situação de vulnerabilidade. O que chama atenção nesse processo é que somos um dos maiores produtores e exportadores de alimento do mundo. Alimentamos uma boa parte da população global e não conseguimos alimentar o nosso próprio povo.
Grandes clássicos da literatura brasileira já abordaram o tema com um grau descritivo tão intenso que chega a ser dolorido, a ponto de não separarmos a ficção da realidade. Em Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus disse que “a tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”. Graciliano Ramos em Vidas Secas traz uma realidade dura de dificuldades e sofrimentos da família de Fabiano e Sinhá Vitória em busca da sobrevivência. Os personagens tentavam fugir insistentemente da fome e da miséria que os assombrava diariamente. Aqui, um dos maiores romancistas brasileiros não fala apenas de seca e fome, fala também de um Brasil construído, historicamente, a partir do simbolismo excludente dos sem chão e sem escola.
Rachel de Queiroz, em O Quinze, também aborda essas travessias marcadas pela fome. Os caminhos dos personagens eram descritos não apenas pela geografia do lugar, mas pela forma como as pessoas se adaptavam na luta pela sobrevivência que, muitas vezes, se traduzia em uma luta perdida. (…) E se não fosse uma raiz de mucunã arrancada aqui e além, ou alguma batata-brava que a seca ensina a comer, teriam ficado todos pelo caminho, nessas estradas de barro ruivo, semeado de pedras, por onde eles trotavam trôpegos, se arrastando e gemendo.
Itamar Vieira Júnior em Torto Arado, fala sobre a mortalidade infantil em Água Negra, localidade fictícia situada no interior da Bahia. Através das memórias de Bibiana, nos deparamos com uma realidade dura marcada pelo descaso. Diz ela que (…) as crianças eram as que mais padeciam: paravam de crescer, ficavam frágeise por qualquer coisa caíam doentes. Perdi as contas de quantas não resistiramà má alimentação e seguiram sem vida, em cortejo, para o cemitério da Viração. As velas que meu pai acendia para cada criança pareciam não querer permanecer acesas: mesmo sem ventos ou golpes de ar, se apagavam.
Para além da literatura, o Brasil forneceu ao mundo um dos nomes mais importantes da segunda metade do século 20. Josué Apolônio de Castro, mais conhecido como Josué de Castro. Escritor, geógrafo, médico, nordestino e um dos primeiros a falar sobre a fome através de sua dimensão social e política. Até então, o tema era tratado a partir de uma visão inevitavelmente fatalista da realidade econômica. O escrito Barbosa Lima Sobrinho ao falar sobre a importância de Josué para o Brasil relatou que o país possuía uma visão distorcida sobre o tema, já que havia um discurso ufanista que exaltava a fartura e o bem estar de uma nação que tentava expor sua vocação agrícola para o mundo. Geografia da Fome, a principal obra de José de Castro, contrapõe essa perspectiva, mostrando uma realidade dura que ainda persiste.
Josué mostrou, através de seus estudos, as causas reais da fome, que não ocorria apenas por questões naturais. Chamou atenção para a ideia de que a miséria não era consequência para uma parcela preguiçosa da população, mas havia ali diversos fatores estruturais que iam desde a concentração de renda até a formação histórica dos latifúndios no país. Escreveu que “metade da população brasileira não dorme porque tem fome; a outra metade não dorme porque tem medo de quem está com fome”. Denunciava a “fome como flagelo fabricado pelos homens contra outros homens”.
A importância de Josué de Castro é inegável. Foi eleito por representantes de mais 70 países, presidente do Conselho Executivo da FAO, organismo das Nações Unidas que trata deagricultura e alimentação. Recebeu duas indicações para o Prêmio Nobel da Paz e uma indicação para o Nobel de Medicina. Foi o deputado mais votado do Nordeste e, durante a ditadura, teve seus direitos políticos cassados, sendo um dos poucos perseguidos políticos que nunca conseguiu retornar ao Brasil, morrendo ainda no exilio, em 1973. Sobre a saudade que sentia do Brasil, declarou que “não se morre apenas de enfarte ou de glomerulonefrite crônica, mas também de saudade”. Foi perseguido em seu próprio país. Seu nome foi censurado, seus livros banidos e seu retorno negado diversas vezes por personagens sujos que fizeram da ditadura uma página violenta e infeliz da nossa história. O Brasil precisa conhecer o Brasil. Voltamos a falar sobre a fome e precisamos voltar a falar sobre Josué de Castro.