Os caminhos do Dr. Paulo Márcio
23 de março de 2022Os caminhos do Dr. Paulo Márcio por Flávio Sátiro Fernandes
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 29/10/2021 .
“Enfim, eis-me de volta à cidade natal, com uma carta de bacharel, alguma literatura e nenhuma experiência”.
É assim que o bacharel Paulo Márcio inicia seu diário, com o qual deseja registrar sua nova vida, voltando à pequena Lagoa, após cinco anos de estudos no Recife, frequentando a tradicional Faculdade de Direito.
Ao escrever aquele começo, em tom pacato, coloquial e intimista até, o bacharel assegura que imprimirá ao diário duas qualidades que entende possuir ao escrever: a simplicidade e a naturalidade. Nada de linguagem arrevesada e preciosa – diz ele.
Com tais qualidades, o bacharel vai derramando no diário os acontecimentos do dia a dia, desde o primeiro, de seu retorno à cidade natal. Os fatos, as contradições, os dilemas, as saudades, diga-se. Principalmente os dilemas e as contradições, em seu renascer, em seu retorno, o eterno retorno.
Difícil estava sendo se readaptar à vida pós-academia. Afastado, por cinco anos, do convívio com o interior, custavalhe recompor-se com seu mundo de antanho, com seu mundo e sua gente. A primeira dificuldade a enfrentar foi, para surpresa sua, dentro mesmo de sua profissão, melhor dizendo, a sua inabilitação prática, para o exercício profissional.
Do ponto de vista teórico, nenhuma dificuldade, nenhum empecilho se lhe apresentava, haja vista os conhecimentos obtidos nos bancos acadêmicos. Porém, como diz a sabedoria popular, “na prática, a teoria é outra”. E haja os desencontros, as dúvidas, as vacilações quanto aos atos processuais a executar, a requerer, a cumprir, a obedecer.
Um exemplo dessa inabilitação entre a teoria e a prática está no caso da “acusação de citação”, momento processual em que a parte citada acusava ou comunicava nos autos processuais haver recebido a citação, manifestação que possibilitava uma série de consequências tanto em relação ao demandante quanto ao demandado. Mas Paulo Márcio ignorava completamente como se formalizava aquele ato, o que lhe causava muita dor de cabeça. Em seu período de readaptação à vida social da cidade, Paulo Márcio detestava as visitas que recebia dos amigos de seu pai, curiosos em saber como ia o jovem bacharel em sua vida profissional; se tencionava entrar na política, candidatando-se a algum cargo público; se gostava da vida rural; se já fora visitar as fazendas; se já era noivo etc., etc.
As páginas mais apaixonantes do “diário” são aquelas que, salteadamente, contam o romance que se desenvolveu entre Paulo Márcio e uma jovem ali residente, que ele viu, pela primeira vez, numa festa organizada por rapazes e moças da cidade, logo após sua chegada, encontro, aliás, que ele considerou desinteressante. “Apenas uma moça me despertou a atenção” – confessou, adiantando: “Se não foi um equívoco e resistir à segunda olhadela, voltarei a falar no assunto…”
Em outro dia, voltou a falar na jovem: “Vi hoje na missa a moça de que falei há alguns dias. Chama-se Maria Augusta, é filha do dentista Fábio Noronha”.
E seguem outros detalhes, inclusive a sua beleza. A partir daí, em dias diversos, o diarista narra seu romance com Maria Augusta, o qual vai ganhando um crescendo e uma atração que prende o leitor, ao lado de algumas outras questões profissionais e políticas e até policiais de que participa o bacharel. A esta altura, perguntará o leitor: afinal, quem é esse bacharel Paulo Márcio de quem falamos até aqui.
É, digo eu, ninguém menos do que o personagem principal do romance O Quadro-Negro, de Ernani Sátyro, saído em 1954, com o selo da Livraria José Olympio Editora. O romance foi muito bem recebido pela crítica, merecendo apreciações consagradoras de nomes como Adonias Filho, José Lins do Rego, Temístocles Linhares, Olívio Montenegro, Álvaro Lins, Joel Pontes, Carlos Drumond de Andrade, Wilson Martins, Pessoa de Morais, Virgínius da Gama e Melo, Almeida Fisher e outros mais, vários deles chamando a atenção para um aspecto em que o autor foi pioneiro e inovador, qual seja, a forma de “diário”, jamais utilizada por qualquer autor como plataforma de um romance da envergadura de O Quadro-Negro.
Um detalhe a enfatizar: formação no Recife com estudos acadêmicos na velha Faculdade de Direito; origem interiorana, saído da pequena Lagoa, aonde iria se fixar, de volta, após a colação de grau; estudos primários na terra natal e estudos secundários na capital do Estado, inclusive no Lyceu, o velho educandário estadual; filho de pai abastado, grande proprietário rural; pendores literários e políticos, todas essas qualificações são coincidentes com as situações vivenciais de Ernani Sátyro que, igualmente, fez os estudos iniciais na cidade natal continuando-os em João Pessoa, inclusive no Lyceu Paraibano, matriculando-se, em seguida, no velho templo jurídico que é a Faculdade de Direito do Recife, por onde colou grau em Direito e retorno à terra natal, onde entregou-se, de início, à advocacia, engajando-se, posteriormente, na política, com incursões na literatura. Diante de tão flagrantes identidades, muitos hão de perguntar: é O Quadro-Negro um romance autobiográfico? Deixemos que a resposta seja dada pelo próprio autor que, ao escrever para os Arquivos Implacáveis de João Condé, dizendo como nasceu o romance, no trecho final de seu depoimento, assim se expressou: Se me perguntarem se é autobiográfico, responderei que é e não é. Quem porventura me conheça e leia aquelas páginas, verificará que a história de Paulo Márcio não é a história de minha vida. Mas ele pediu muito de meu sangue, e eu lho dei de bom grado. Dei-lhe minhas experiências e meus sonhos – minhas pobres experiências e meus ricos sonhos.
Toda ficção há de ser retirada de dentro de nós mesmos, inclusive as coisas que vemos pelo avesso, que descrevemos de modo inteiramente contrário daquele como desejaríamos que elas tivessem acontecido. Mas os personagens se rebelam, todos sabem isso. Arrebentam as linhas com que os prendemos. A própria natureza se revolta, as paisagens estremecem e tomam vida. Nem sempre se conformam com os figurinos, com as descrições bem arranjadas, tão próprias para os cromos de parede. Sei que o arquivista implacável quer saber mais coisas. Mas não posso ir adiante. Ou o livro se explica por si mesmo, ou nada vale. Não há esclarecimentos posteriores que possam salvar um romance.
(Revista O Cruzeiro, 11 de dezembro de 1954)