Allyrio não falava russo
22 de março de 2022Allyrio não falava russo por José Mota Victor
Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 14/05/2021 .
No ano do centenário da cidade de Patos (2003) publiquei a plaqueta O Louro do Jabre, uma coletânea dos aforismos, máximas e pensamentos do escritor Allyrio Meira Wanderley encontrados nos seus livros publicados.
Depois da introdução da pesquisa, escrevi uma breve biografia do polêmico escritor intitulada Allyrio segundo ele mesmo, inspirada nos seus livros Bolsos Vazios e Ranger de Dentes. Em um dos parágrafos transcrevi interessante texto do poeta Eduardo Martins: “Era poliglota. Falava quase todas as línguas da Europa. Dominava o Russo. Traduziu clássicos como Um Jogador, de Fedor Dostoievski, Padre Sérgio e Khadji-Murat, de Leon Tolstoi, Judas Iscariotes e Os Sete Enforcados, de Leonid Andreief”.
Para feitura da plaqueta, tinha lido também o discurso de posse de Luiz Gonzaga Rodrigues na Academia Paraibana de Letras que referendava, de forma cautelosa, o depoimento de Martins: “Dele se dizia que, falando várias línguas, fora também testá-las na fonte, conferir as desconfianças cartesianas na França, na Bélgica, na Rússia, trazendo de Heidelbergh um título de filosofia. Corria tudo isso na Casa do Estudante, no Liceu, nas conversas dos grêmios e nas mesas de bar”.
Naquele período não me preocupei em aprofundar a pesquisa sobre o assunto e as informações colhidas ficaram restritas aos depoimentos dos dois imortais da Academia Paraibana de Letras. Depois da plaqueta publicada, fiquei preocupado com um depoimento do escritor Adonias Filho que duvidava das viagens do escritor a Europa: “Permanece a mitomania que ainda hoje o obriga a contar uma imaginária viagem aos países europeus e idealizar jantar em que declamava Píndaro diante do espanto de André Gide e de Paul Valéry”. A partir daí, iniciei uma penosa pesquisa nos sebos do Brasil com o objetivo de adquirir os livros da Biblioteca de Autores Russos publicados pela Editora Georges Selzoff e que provavelmente teriam os créditos das traduções do escritor Allyrio Meira Wanderley.
Com o advento da Internet, o trabalho do pesquisador melhorou consideravelmente e, sentado diante do computador, depois de vários meses de pesquisa, consegui comprar algumas edições da década de 1930 da famosa Biblioteca de Autores Russos.
Aguardava ansiosamente a chegada dos livros pelos Correios e abria cuidadosamente os pacotes como quem abre o invólucro de uma peça rara e preciosa. O coração palpitava folheando os livros envelhecidos à procura do registro do nome do nosso poliglota nas amareladas páginas russas. Primeiro recebi Padre Sérgio, em seguida Khadji-Murat, depois os Sete Enforcados e, finalmente, Judas Iscariotes.
Um Jogador da década de 1930 escondeu-se de tal forma que desisti da pesquisa, três anos depois consegui comprar o livro. Allyrio não estava lá. Depois de vários anos consultando o Dr. Google, encontrei o blog Não gosto de plágio, da gabaritada tradutora Denise Boottmann, que estava pesquisando sobre a Georges Selzoff e tentando descobrir os tradutores dos livros russos publicados pela pequena editora.
Foi no blog de Denise que confirmei as traduções de Allyrio Meira Wanderley para Um jogador, de Dostoievski, Khadji-murat e Padre Sérgio, de Tolstoi, e Judas Iscariotes, de Leonide Andreieff. Os três últimos livros citados da Biblioteca de Autores Russos da Georges Selzoff, que tenho na minha biblioteca, não possuem os créditos da tradução de Allyrio.
No livro Os Sete Enforcados, de Andreieff, que Eduardo Martins confirmou como traduzido por Allyrio, encontrei apenas os créditos para Georges Selzoff e Orígenes Lessa. A minha dúvida sobre Allyrio tradutor residia exatamente neste ponto: a falta dos créditos nos livros.
Sobre esse questionamento Bottmann me escreveu: “Bom, não me parece casual que Selzoff tenha publicado Sol Criminoso – parecia haver essa ‘sinergia’ também com Lessa: você traduz comigo e publico seu livro, essas relações entre editor/autor/tradutor que não são raras em nosso meio”. A Editora Selzoff só publicou, fora da Biblioteca de Autores Russos, um livro de Allyrio e outro de Orígenes Lessa, intitulado A Cidade que o Diabo Esqueceu. Boris Schnaiderman, um dos pioneiros na tradução de livros russos no Brasil, em entrevista a Raquel Cozer em 2010, falou sobre o processo tradutório da Editora Selzoff. Denise, baseada em Boris, me escreveu: “O Selzoff ia lendo o original em voz alta, traduzindo, e os brasileiros iam dando a forma em português – como a Virginia Woolf, por ex., fazia em suas ‘traduções’ do russo; tem um russo do lado lendo e traduzindo oralmente”. Quando perguntei se Allyrio falava russo, ela respondeu: “Não, não, nenhum daqueles falava russo, Brito Broca, Elsie Lessa, Orígenes Lessa – ao que consta (segundo o Schnaiderman)”.
O certo é que os primeiros livros russos publicados diretamente do original foram traduzidos a quatro mãos no Brasil. A história registra os nomes de Allyrio Meira Wanderley, Brito Broca, F. Olandim, Orígenes e Elsie Lessa como tradutores da Georges Selzoff. Finalmente em 2013 adquirimos um exemplar do livro Porque Morremos, de Alexandre Lipschütz, com os créditos da tradução de Allyrio Meira Wanderley e Georges Selzoff.
O livro foi publicado pela Companhia Editora Nacional. Allyrio não falava russo, mas escrevia em português decente o que Georges Selzoff lia, do original russo, traduzindo em voz alta com o português precário que tinha, segundo Schnaiderman.