Machado de Assis

12 de julho de 2024 Off Por Funes Patos

Machado de Assis Por Professor Delzymar Dias

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 12/07/2024.

Machado plantou mistério há 130 anos

 

Uma história que vem sendo discutida há 130 anos. Uma história que ultrapassou os limites da sala de aula e dos círculos literários. Um livro tão saboroso, que você precisa degustá -lo mais de uma vez, como uma comida de infância que vai revirando seus gostos de acordo com o momento da vida que você o consome. Se você nunca leu Dom Casmurro, não continue por aqui, esta crônica traz algumas percepções sobre a história que certamente você não precisa saber antes de mergulhar na obra.

Já no início, respondo a pergunta que você possivelmente só imagina que estaria ao final da crônica. Não! Capitu não traiu Bentinho. E vou além, ela é uma personagem muito mais interessante que Bentinho, que, em narrativa única, já desconfiava de Capitu desde o início, mesmo sem que ela fornecesse nenhum elemento. Machado de Assis é tão genial, que constrói uma história que desperta mudanças de perspectivas totalmente atemporais. Até a primeira metade do século 20, havia uma espécie de consenso sobre a traição de Capitu, porém, quando Dom Casmurro passa a ser analisado e relido a partir de novas frentes, enxergamos um Bentinho possessivo e até um pouco neurótico quando fala ou interage sobre aquela que teria, segundo José Dias, os olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Bentinho tinha uma imaginação fértil, a ponto de, com um simples aperto de mão de Sancha, conjecturar uma insinuação sexual da mulher de Escobar para ele, fantasiando uma situação que o levou à angústia.

Dom Casmurro é um livro para ser lido várias vezes. A primeira leitura nos leva a uma resposta objetiva sobre a possível traição de Capitu, já que somos envolvidos por uma narrativa que impossibilita ao leitor entendê-la, até porque demoramos para perceber que só conhecemos a Capitu apresentada por Bentinho, com pitadas de comentários apresentados pelos agregados da história. O escritor e biógrafo de Machado de Assis, Cláudio Soares, estudou duas versões de Dom Casmurro modificadas pelo próprio autor, afirmando que “podemos notar como Machado modificou a história ao excluir trechos, especialmente aqueles que poderiam ser relacionados ao enigma do adultério. A supressão dessas partes visou, certamente, dificultar ao leitor a descoberta e a revelação do mistério que envolve a trama”. É uma ambiguidade certamente proposital que pode passar despercebida para quem busca a obra apenas para achar uma resposta ou evidência à traição de Capitu.

A partir da segunda leitura, outros aspectos da obra vão ficando evidentes, como o contexto da sociedade brasileira do fim do século 19, marcada fortemente por uma cultura escravocrata e elitista. É exatamente aqui, a partir das abordagens multidisciplinares que a obra de Machado nos traz, que precisamos aprofundar as discussões sobre a necessidade de ampliação dos espaços da literatura nas escolas, fora de uma perspectiva apenas conteudista. A presença da literatura brasileira na educação precisa ir além da imposição formal de uma leitura que vise a composição de uma nota. Chega a ser um insulto a qualquer escritor que sua magnum opus seja colocada em uma “grade” onde adolescentes são obrigados a ler uma obra dentro de uma estrutura educacional que não favorece a leitura, a compreensão, o debate e a contextualização que toda história precisa ter. Muitos desses estudantes acabam buscando resumos na internet ou vídeos com respostas prontas sobre a obra, criando gerações de não-leitores. Na última etapa da Educação Básica, esses jovens chegam a ter 12 disciplinas obrigatórias e, dependendo do sistema, 16 professores que se revezam em provas, simulados, exercícios, trabalhos extras e um sistema rígido de controle de aulas que engessa a criatividade e o interesse do aluno ao determinar o que precisa ser debatido em cada aula, sem que haja nenhuma participação desse jovem na escolha daquilo que será discutido.

Ler Machado de Assis é apostar na possibilidade de ampliação da capacidade criativa de qualquer pessoa. Na crônica “O punhal de Martinha”, Machado diz que “grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas”. Genial não é?