A dor tem seu ritmo

22 de julho de 2024 Off Por Funes Patos

A dor tem seu ritmo Por Professora Klítia Cimene

Texto extraído da coluna Funes do Jornal a União publicado na data de 19/07/2024.

 

O dia começava bem. O cântico variado dos pássaros engaiolados acordava José. Mal o sol iluminava o dia, e eles faziam sua sinfonia diária. Como de costume, José levanta e vai até a janela apreciar a beleza que ele prendia. Essa contemplação lhe importava. Ele gostava de ter a dominação sobre a beleza. Eram três os cantores da natureza. Cada um de uma cor, de um cântico próprio. A gaiola unia os três e dava a José a alegria de tê-los seus, por ali, sempre por ali. Quando o dia se prolongava, o homem ia ao trabalho, fazia as compras de casa e, à tardinha, voltava. Era assim sua rotina. Nada a modificava. Quando a noite vinha, lá estavam os três cantores, agora, em silêncio, esperando mais um amanhecer e, com ele, os mesmos ritmos.

No dia em que José trouxe Sofia, a namorada, para vê-los, o amanhecer tomou a mesma sorte, mas em um outro ritmo. Ela, no quarto; eles, na gaiola. Mais uma beleza que José trouxera e dominara. Nesse dia, a vida dela passou a ser a dos pássaros. Cantaram juntos, por alguns dias, o cântico da tristeza que os prendia ali. Amanhecia, José saía e eles ficavam cantando, cantando, cantando… O dia sempre começava bem, para quem não estava engaiolado.

Sofia tinha seu próprio cântico de tristeza: ela aprendeu com os pássaros a entoar uma canção de dor, alimentada com lágrimas. Dali, quando seu dono saía para trabalhar, na gaiola maior, ela, por algum tempo, chorava. Ao cair da tarde, ouvia a porta se abrir e os pássaros a cantar. Era José. Ele trazia os pães, o leite e as chaves das gaiolas. Sofia já havia enxugado as lágrimas, banhado o corpo e se perfumado. Estranhamente, se alegrava com a presença dele. As janelas da casa se abriam, o café era feito, e eles sentavam à mesa para jantar. Depois da janta, José olhava e acenava para os pássaros, fechava as janelas, guardava bem as chaves e os dois iam para o quarto. Quase não havia diálogo nesse cotidiano. Somente os cânticos quebravam o silêncio do lugar. Diariamente, José acordava satisfeito. Para onde olhava, havia beleza. Beleza e tristeza. Em seu semblante, nada belo, havia alegria e o deleite de um ser realizado, cujos prazeres nasciam da dor alheia…

E outro dia amanheceu! De novo, José saiu para o trabalho, deixando Sofia em casa, ouvindo o cantar dos pássaros. Mas neste dia, ela decidiu ir até a gaiola, que ficava diante da janela. Encostou os ouvidos bem pertinho dela, fechou os olhos e imaginou os três cantores da natureza voando a céu a dentro, longe da rotina de dor que lhes encarcera. Inspirou o ar da coragem e, com o ferro que fechava a janela, quebrou o pequeno cadeado e pegou os pássaros. Alegremente, lhes deu um beijo e os soltou. Até onde sua vista alcançou, a moça bonita de olhos verdes olhava encantada a beleza do voo daqueles talentosos inocentes. Pensou em fazer o mesmo com sua própria gaiola; pensou em quebrar a fechadura da porta, pensou em voar com as asas da pequena coragem que tinha, mas desistiu. Pensou bem! Já estava acostumada com a gaiola, já estava acostumada com José. A liberdade não lhe pertencia. Ela não tinha asas.

A tarde caía, e Sofia sentia falta da beleza da sinfonia dos pássaros. Mas José logo chegaria e traria pão, leite e as chaves…