Um dia você há de se lembrar

24 de fevereiro de 2025 Off Por Funes Patos

Um dia você há de se lembrar Por Aline Cardoso.

Texto extraído da coluna FUNES do Jornal A União publicado na data de 21/02/2025.

 

Um dia, quando você sentar na beira da calçada para amarrar o cadarço dos sapatos, há de lembrar-se de mim, ajoelhada, diante de você. Calço seus pés, miro-lhe o riso, lavo o seu corpinho preservando beneditinamente cada instante. Há de achar que eu nunca tive um medo.

Será que há de pensar que eu os temperava e comia antes do café da manhã? Eu sou chata e agora ela me diz isso com um “ch” com som de “s”: você é “sata”! E também me faço satã se o motivo for mantê-la viva, segura de si e protegida. Deu muito trabalho fazer cada célula que compõe este ser. Veja só se eu poderia lidar com isso de aceitar nada menos que o máximo.

Se eu poderia acatar a amargura de ver mais motivos para sangrar do que para elevar meu canto! Eu tenho medos reais que me impedem de subir degraus tracejados nos poros da minha pele. Eu lembro da sua bisavó dizendo: “Imagina essa doida mãe?!”. Depois, eu bem sabia que ela tinha era orgulho por ver você sadia. Quando a roda da fortuna girou, eu me tornei mainha, você passou para o meu canto, minha vó virou Vó Rosa, que o tempo não permitiu que você chegasse a conhecer… Rosa é o nome de sua tataravó. Ela vivia em Mari, gostava de Alma de Flores. Minha avó chamou-me de cigana quando você nasceu. Sua avó ficou por dias repetindo que não sabia como eu tinha parido só, em casa, sem médico.

Gerações
Quando a roda da
fortuna girou, eu me
tornei mainha, você
passou para o meu
canto, minha vó virou
Vó Rosa, que o tempo
não permitiu que você
chegasse a conhecer

 

Acho que nós já tínhamos um vínculo tão grande, que quando chegou a boa hora, só precisamos acertar os passos e dançar entre as contrações. Quando me sinto insuficiente lembro de que a lua pariu o mar e abalou as profundezas de todos os abismos, e isso saiu arrastando tudo o que havia de fraco pelo meio do caminho. Aprenda a descobrir e a preservar o que te mantém de pé, o que te acolhe na queda e o que te mantém viva. Acho lindo o fato de partilharmos os mesmos olhos de fortes correntezas.

Você é o meu primeiro grande ato de amor à vida, ao mundo, às pessoas que me circundam. Trazer você para este mundo foi um desejo sagrado. Cantei a sua canção um ano antes da sua vinda. Anunciei sua chegada e te gestei em meus sonhos, antes de você habitar o meu ventre. Sei que você também se lembrará das vezes em que eu precisei te dizer não. Mar, eu quero que você se lembre de que pode criar mundos, de que pode recriar a vida. Você pode mais do que eu pude, mais do que nossas ancestrais puderam. Seja tudo o que você quiser.